Os trechos a seguir são uma crítica de Jonathan Swift, apresentada no livro "As Aventuras de Gulliver"(1725), sobre a Hipocrisia na Sociedade Humana. O Cenário é a parte em que Gulliver está acomodado em Brobediguenage.
Gulliver foi acolhido por um Fazendeiro Gigante que o levou ao Castelo Real para entreter o Rei de Brobediguenague, e lá, conversou com ele sobre o modo de vida na terra de Gulliver.
A conversa (assim como o livro) são pautados na ironia, no humor, no sarcasmo e no escárnio, principalmente da classe política da época. Meses antes de chegar a Brobediguenague, Gulliver havia "aportado" em Lilipute, onde as pessoas eram irritadas e tinham tamanhos minúsculos.
SWIFT, Jonathan. Viagens de Gulliver. Trad. Fernando Nuno.
"Gulliver conversando com o Rei de Brobediguenague", As Viagens de Gulliver. George Routledge e filhos, ca. 1900
"Às sextas-feiras, o rei vinha almoçar conosco, aproveitando para fazer perguntas sobre a minha terra."
"Falei das nossas guerras no mar e em terra, do comércio entre as nações, dos títulos de nobreza e do luxo dos ricos. O rei comentou sobre a pequenez da grandez humana, já que podia ser arremedada por insetos insignificantes como as pessoas de quem eu estava falando, e admirou-se de que criaturas tão desprezíveis e minúsculas como nós se metessem a fazer guerras e outras barbaridades. A princípio me senti ofendido, mas logo percebi como ele tinha razão. Eu já estava tão acostumado à grandeza que via naquele país que, se voltasse a encontrar um grupo de damas e lordes ingleses, ou de outras pessoas que se acham importantes, todos engalanados e cheios de pompa, certamente zombaria deles como eles próprios costumam zombar dos outros." (SWIFT, pp. 36-7)
"O rei gostava de me fazer perguntas sobre o modo de vida e o governo de meu país. Comecei falando sobre a integridade dos governantes da Europa e das Américas, de como eram honestos os parlamentares e de como lutavam sempre com despreendimento e altruísmo pelos interesses do povo. Falei também sobre nossos juízes, verdadeiros sábios intérpretes da lei, e sobre os especialistas que administravam a economia e as finanças de nosso país com uma competência tão grande e tão rara. Dessa forma, durante cinco audiências, pude provar a Sua Majestade como, apesar de sermos pequenos no tamanho, não ficávamos nada a dever a pessoas tão grandes como as de Brobediguenague."
"Em nosso sexto encontro para tratar desses assuntos, tendo ouvido com atenção meus orgulhosos discursos, o rei começou a apresentar questões como estas:"
"O que fazemos para impedir a corrupção e o suborno? Os deputados conhecem realmente as leis que aprovam? As pessoas comuns não se arruinam quando têm de lidar com a justiça ao pagar advogados e custas judiciais? Quanto tempo demora o julgamento de uma causa, ou seja, uma pessoa injustiçada tem de continuar a ser prejudicada por muito tempo?"
"E assim prosseguia, numa quantidade interminável de perguntas."
"O rei quis saber também se nossos administradores realmente nunca se enganavam em suas contas, causando prejuízos e miséria ao povo; quando isso acontecia, eles continuavam a receber seus altos salários? E sobre as religiões: se todas pregavam o amor, por que tinham tanto ódio umas pelas outras?"
"Para responder melhor, contei a história de nossos povos durante os últimos séculos, dando muitos exemplos das soluções que nossos líderes, em sua imensa sabedoria, criaram para os conflitos, evitando guerras. Por fim, elogiei tudo o que podia encontrar de positivo em nossa civilização. Depois de minha exposição, ele concluiu:"
"- Meu pequeno Grildrigue [anãozinho], você apresentou um belo relato de seu povo: ficou provado que a ignorância e a preguiça são qualidades comuns em qualquer bom administrador e que as leis são mais bem compreendidas justamente por aqueles que pretendem desrespeitá-las. Noto que as intenções são boas, mas que na hora de colocá-las em prática a situação muda. Por tudo o que você contou, vi que as pessoas não costumam ser promovidas devido ao seu valor ou dedicação, mas por outros fatores que nada têm a ver com isso."
"Devo dizer, neste ponto, que não concordo com as opiniões daquele rei, que, pelo visto, só tem tamanho. E estou certo de que todos os leitores estarão de acordo comigo, vendo claramente como ele foi injusto com nossa sociedade. A melhor prova de minha honestidade é que, neste preciso momento, eu estou aqui, relatando fielmente as coisas mais desfavoráveis que ele disse a nosso respeito. No entanto, quanto mais coisas eu dizia para nos defender, mais ele me confundia: ou seja, mais ele encontrava motivos para rir ou para aprofundar o mal juízo sobre nós."
"Naturalmente, podemos relevar tais opiniões, pois trata-se de um rei que vive totalmente fora do mundo e não conhece os nossos costumes. A distância sempre produz preconceitos, e isso - os preconceitos - é uma coisa que nós, pessoas que conhecemos o mundo, não temos, absolutamente."
"No entanto, para que o rei não continuasse a fazer má ideia de mim e para cair nas boas graças dele, falei sobre a pólvora e o seu poder de destruição, tão oportuno nas guerras - apesar de ser tão usada também nos tempos de paz. Eu conhecia todos os ingredientes e o modo de fabricá-la e me ofereci humildemente para produzí-la para Sua Majestade, com o fim de ajudá-lo a defender o reino."
"Ele ficou horrorizado com a proposta. Depois de perguntar como tínhamos a coragem de usar uma substância tão terrível em armas de fogo e canhões contra os nossos próprios semelhantes, disse que estava muito admirado de que um 'inseto tão impotente e insignificante como eu' (foram essas suas palavras) podia ter ideias tão desumanas com tanta naturalidade. Por fim, concluiu que preferia perder metade de seu reino a possuir o segredo da pólvora e me proibiu de voltar a falar no assunto."
"No entanto, mais espantado ainda fiquei eu ao ver um governante que parecia tão sábio desprezar dessa forma uma ajuda preciosa para dominar completamente as outras pessoas - tudo por causa de um escrúpulo tão desnecessário e incocebível na nossa sociedade."
"Sei muito bem que agora os leitores devem estar com uma impressão bem ruim desse rei, mas minha intenção não é diminuir ninguém. Pelo contrário; faço questão de dizer que, se ele pensa isso, só pode ser por ignorância, pois não sabe como nossa civilização é avançada, uma vez que não a conhece. Para que vejam a que ponto chega essa ignorância, devo contar que ele também disse que uma pessoa que fosse capaz de cultivar duas espigas de trigo onde normalmente só nascia uma tinha mais valor do que toda a classe de políticos!"
"Só mais uma coisa: sabem que naquele país é proibido escrever comentários sobre as leis? Eles acham que só a lei, que é sempre bem formulada, é suficiente e deve ser cumprida sem mais delongas; não é possível um advogado defender uma causa em que não acredite, nem por dinheiro; e um juiz não pode julgar uma vez de um modo e, na vez seguinte, dar uma sentença contrária à do julgamento anterior." (SWIFT, pp. 40-3)
Essas são as palavras de Gulliver, em pleno século XVIII. MUito lúcido inclusive para a atualidade.
©Jonathan Swift, 1725.
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