sexta-feira, 14 de junho de 2019

A pegadinha






Este texto foi concebido primariamente como uma Comissão Parlamentar de Inquérito.

Uma amizade improvável se formara, há muitos anos, no município de São José dos Pinhais, no Paraná.
Tomás e Geraldo se conheceram na delegacia. Tomás tinha 20 anos e Geraldo, seis anos mais moço, tinha 14.
O crime de Tomás foi ter colado um adesivo com dizeres políticos (retirado da lixeira) em local público, e Geraldo havia quebrado os dedinhos da filha do diretor do colégio na dobradiça da porta do banheiro, enquanto brincava de esconde-esconde. Os dois estavam passando a noite na delegacia; Tomás fora detido por vandalismo e Geraldo por violência. Nenhum dos dois era reincidente e nenhum deles voltou para prisão.
Mas foi lá que eles se conheceram e se tornaram melhores amigos.
Atualmente, Geraldo tem 63 anos, é graduado em teologia, tem especialização em filosofia e leciona catequese na igreja de São José dos Pinhais. Tomás, de 69 anos, fez faculdade de medicina veterinária, especializou-se em biologia marinha e cuida de Mandíbula, o primeiro tubarão branco nascido e criado no Brasil, no aquário do município.
Todas as sextas-feiras, Geraldo e Tomás encontram-se no restaurante próximo a delegacia onde eles se conheceram.
Certa noite, Geraldo enviou um correio eletrônico (e-mail) para Tomás.

Tomás, eu estou muito desgostoso com a situação política atual do Brasil. Nós somos amigos de longa data e, que Deus perdoe meu sacrilégio, nosso tempo na Terra está passando.
Eu estive pensando em fazer uma travessura, daquelas que fazíamos nos tempos da juventude.
O que acha da ideia, companheiro?
Abraços do velho.

Tomás leu o correio eletrônico e respondeu:

Geraldo, eu apoio sua ideia. Conte-me mais, por favor.
Abraços do outro velho.

Geraldo disse:

Tomás, a molecagem é a seguinte: primeiro, nós compraremos roupas inteiramente pretas e gorros e luvas, também pretos. Também compraremos tinta em spray.
Eu consegui uma cópia da placa do carro do governador do Paraná, Ratinho Júnior.
O plano: durante a calada da noite, enquanto todos os mortais estiverem dormindo, nós vamos dirigir até Curitiba com a placa do Júnior acoplada, para fazer uma visita à penitenciária onde o ex-presidente Donnerstag está detido.
Vamos estacionar o carro bem em frente a uma câmera de segurança e vamos escrever, com o spray, no muro: RADEMAKER CARA DE MELÃO e VAI PLANTAR CANA, DONNERSTAG. Com isso, vamos testar a eficácia da Justiça brasileira. Será que a Lei é para todos?
Abraços do velho.

Tomás escreveu de volta:

Eu gostei da ideia, irmão. Vamos ver no que vai dar essa história!
Abraços do outro velho.

Paulo Donnerstag era um ex-presidente que se encontrava em detenção na penitenciária de Curitiba. Ele havia sido acusado de ter comprado um sobrado em Maresias e um sítio em Araxá, com dinheiro público, em nome de sua esposa, Maristela Donnerstag.
Hermann Rademaker era o presidente em vigência do Brasil. Ele era militar, pertencente à patente de General reformado do exército. Seu vice, Gordon Zweite, era Capitão da Infantaria.

Era meia noite quando Geraldo passou na casa de Tomás para buscá-lo. Os dois amigos vestiam roupas pretas e Tomás segurava uma sacola de lona.
“O que tem na sacola?”, perguntou Geraldo.
“Tudo conforme o planejado. As latas de tinta em spray e duas lanternas.”
E assim o automóvel de Geraldo, com a placa do carro do governador do Paraná, partiu rumo à Curitiba.
Geraldo estacionou o carro na parte de trás da penitenciária, deixando a placa visível para as câmeras de vigilância. Os dois senhores desembarcaram com as lanternas e as latas de tinta em spray.
“Eu escrevo a frase do Rademaker e você escreve a frase do Donnerstag, para ganharmos tempo. Não se esqueça das letras garrafais!”, sugeriu Geraldo.
Os guardas da penitenciária estavam dispersos. Alguns dormiam, outros jogavam UNO, e outros fumavam substâncias ilícitas. Nenhum deles percebeu a presença dos “provocadores sexagenários de balbúrdia”, que ameaçavam a ordem naquela noite tão serena.
“Eu me sinto como jovem de novo!”, sussurrou Tomás, enquanto ele pichava.
Tomás e Geraldo picharam o muro e passaram a noite inteira rindo do que eles fizeram. Aquela noite fora inesquecível.

No dia seguinte, os guardas do turno diurno da penitenciária de Curitiba levaram um tremendo susto ao chegar ao posto de trabalho. Estava escrito, em letras garrafais, “Rademaker cara de melão” e “Vai plantar cana, Donnerstag” no muro da edificação.
Quem poderia ter feito aquilo? Foi o que os guardas se perguntaram.
Massimo, um dos responsáveis pela vigilância, considerou olhar as gravações das câmeras de segurança.
Na noite anterior, um carro estacionara. Massimo aproximou a imagem para visualizar a placa do carro. Era idêntica a de Ratinho Júnior, o governador do Estado! Aquilo não fazia sentido...
Não demorou muito para que a mídia chegasse para fazer a cobertura.
Muro da penitenciária de Donnerstag foi pichado!
‘Rademaker cara de melão’ e ‘Vai plantar cana, Donnerstag’ são as frases encontradas na manhã de hoje!
O que Donnerstag acha disso?
Donnerstag: ‘Nunca fui tão desrespeitado! Este país nunca foi tão desrespeitado! Moro e Dalagnol são meus inimigos!’
O que Rademaker acha disso?
Rademeker: ‘Concordo. ’

Geraldo e Tomás racharam o bico ao ver o noticiário. Não demoraria muito até o caso chegar até Brasília. Eles só não contavam com uma coisa: o álibi do Júnior.
“Onde você estava na noite de ontem, Ratinho Júnior?”, perguntou o delegado.
“Em casa! Dormindo!”
“Você pode provar?”
“Minha esposa, meus filhos e a cozinheira estavam em casa. Pode perguntá-los.”
“Eu acredito em você. Mas eu quero que você saiba que alguém queria queimar seu filme. Não só o seu filme como o da política brasileira, também!”
O caso, por ter envolvido o ex-presidente, e o presidente da República em exercício, foi parar no Ministério Público Federal, em Brasília.
Os procuradores, desembargadores e burocratas estudaram cada detalhe da investigação e chegaram a um consenso: o carro. O governador do Paraná não dirigiria um carro daqueles. O Ministério Público enviou um mandado judicial para a concessionária de carros perguntando quem comprara um de seus modelos do ano 2006.
Eles conseguiram então o nome de Valério, filho de Geraldo, que tinha sido o fiador do pai. Valério morava no município de Limeira, em São Paulo.
Polícia Federal! Abra a porta ou será preso! É a Lei.”, gritou a Polícia ao chegar ao cantinho de Valério.
Valério tinha saído para comprar jornal. Sua esposa abrira a porta.
“Meu marido não está. Ele volta em alguns minutos.”
Alguns minutos depois, Valério chegou. A Polícia Federal encostou o sujeito na parede.
Você está muito encrencado, bagunceiro!”, rugiu a Polícia.
“Se você me disser o que está errado, talvez possamos chegar a uma conclusão pacificamente.”
“Você não lê o jornal? Não vê o noticiário? A penitenciária onde Donnerstag está detido foi pichada!”
“Eu sei disso. Mas não fui eu.”
“Explique-se melhor! Seu carro estava lá!”, disse o oficial, mostrando a foto do carro comprado em 2006.
“Eu não dirijo esse carro! Eu fui o fiador do meu pai. É ele quem dirige.”
O oficial pareceu envergonhado.
“Onde mora seu pai? Eu acho que ele é o culpado por essa confusão...”, gaguejou o oficial.
“Ele é de São José dos Pinhais. Fica no Paraná. Acompanhe-me e eu lhe darei o endereço dele.”

Tomás e Geraldo estavam sentados no sofá rindo da traquinagem que eles mesmos arquitetaram. Era como se eles fossem moleques, novamente. Alguém bateu à porta:
Polícia Federal! Abra a porta ou eu arrombarei!”
Tomás para Geraldo, murmurando: “Danou-se! Ferrou muito! É o fim! Fomos descobertos!”.
“Acalme-se, Tomás. Eu planejei tudo isso. No meu quarto, tem uma escotilha embaixo do tapete. Esconda-se lá.”
“Você não vai junto?”
“Não. O plano foi meu, eu arco com as consequências.”
“Então eu também não vou fugir à luta, Geraldo! Nós somos amigos até o fim, lembra?”, sorriu Tomás.
“Até o fim...”
Abra a porta, Geraldo!”
Geraldo caminhou lentamente até a porta e abriu-a.
“Geraldo Angra e Tomás dos Reis! Vocês estão presos em nome da Lei por vandalismo e falsa identidade.”
Geraldo e Tomás levantaram as mãos, culpados. Uma temporada na detenção faria bem aos dois.

Na cela da delegacia, Geraldo disse para Tomás:
“Eu tenho um plano...”
“Vai começar de novo!”
“Dessa vez será diferente! Você vai ver só.”
“Manda!”, animou-se Tomás.
“É o seguinte, assim que nós sairmos daqui, nós voltaremos para Curitiba. Eu me disfarçarei de cozinheiro para colocar um alucinógeno na comida do Donnerstag. É um plano que exige muita habilidade, por isso, eu preciso que você preste bastante atenção.”
Tomás e Geraldo passaram o resto da noite conversando sobre assuntos frívolos e pueris, adormecendo no chão frio da delegacia de São José dos Pinhais, onde eles se conheceram pela primeira vez.
Quanto ao muro pichado, foram tomadas as devidas providências. Um mutirão de pessoas, que apoiavam tanto o General Rademaker, quanto o presidiário Donnerstag, juntou-se na “praça do presídio”, em Curitiba, para limpar a bagunça.
E todos viveram felizes para sempre.
Fim.

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